domingo, 9 de abril de 2017

A MINHA, A TUA, A NOSSA MORADIA

         Este texto surgiu de um questionamento que me fiz e que transformou minha maneira de ver a vida.

        Sempre gostei de mudar de casa sem que houvesse razão aparente ( ou consciente) para sentir tal necessidade.  A satisfação inicial de comprar, reformar e deixar tudo como eu pretendia, era logo substituída pela monotonia, desconforto e a esperança de que outra, em outro local, seria o que eu esperava. Ao mudar-me para uma cidade grande comecei a morar em condomínios e o tempo de permanência no mesmo apartamento começou a ser menor ainda.  Não tinha amigos nem participava de grupos, associações comunitárias ou clubes a não ser a trabalho. Trabalhava bastante e vivia com e pela família.

        Ao me aposentar, mudei-me novamente, desta vez para Santos, cidade no litoral do Estado de São Paulo, que estava começando o seu desenvolvimento para hoje ser considerada uma das ou talvez a cidade com melhor qualidade de vida para se viver, especialmente para os idosos e aposentados.

         Levei um ano para começar a me adaptar física e mentalmente à cidade com seu calor e humidade, à luminosidade do sol, ao cheiro da maresia que vinha com o pulsar constante do mar e o tempo....tempo que não passava ... E eu queria voltar logo para a cidade grande onde havia vida, trabalho, onde o tempo era precioso e os compromissos eram cumpridos no tempo marcado.

        O que mais demorou foi mudar o meu conceito de tempo. Como esperar horas, dias, para um eletricista vir fazer uma instalação solicitada? Que falta de consideração! Se foi solicitada era necessária e cumprir o trato feito seria profissionalismo, senão obrigação e respeito!  Mas tudo andava devagar, o trabalho  era uma parte da vida e não a razão do viver.

        Andei trocando de apartamentos mais três vezes e aos poucos, fui entrando no ritmo do devagar também se chega lá. A cada vez me aproximava mais do SESC onde, juntamente com meu marido, começara a praticar atividades físicas e conhecer gente.

       Foi quando percebi o quanto eu havia mudado. Fisicamente eu estava mais velha - lá se tinham ido dez anos -, e também via o mundo diferente. Eu já era uma santista calma e sociável de corpo e alma.

       Então me perguntei: Por que não me sinto insatisfeita como sempre, neste condomínio? Por que em cinco anos que moro neste apartamento, somente fiz pequenos reparos e consertos e nem me incomoda esta parede do meu quarto  pintada de camurça, se detesto cores escuras em interiores? Nem leio mais nos jornais as páginas de classificados em busca de ofertas de apartamentos à venda?

       Eu não desejo sair daqui! Mudar significa deixar este local, amigos e conhecidos deste condomínio, de outros aqui perto que encontro no SESC, nas ruas indo às mesmas panificadoras, farmácias, lojas, feiras e eventos; significa desapegar desta praia com seus quiosques, rodinhas de conhecidos para bater longos papos tomando caipirinha ou agua de coco com iscas de peixe... Não, gente! Aqui, agora, este Condomínio neste local desta cidade, não é mais onde habito! É onde moro. É isso que sempre busquei; meu lar na minha moradia.

       Finalmente entendi que morar é diferente de habitar. O significado de morar é mais amplo, mais aconchegante do que apenas habitar ou residir. Mais do que viver, morar é  con-viver. Morar não é viver num local e estar apenas fisicamente perto de tudo que me cerca. É me sentir parte do local em que moro e das coisas e pessoas de quem eu me aproximo e que se aproximam de mim. Se me sinto parte de algo é porque com ele eu convivo, eu dou e recebo. Entre eu e meu ambiente (incluindo coisas e pessoas) há um campo vivo de atividades, físicas e mentais, em constante movimento.Tudo que me toca mental e/ou fisicamente  me modifica, me transforma, convive comigo como parte da minha moradia, da minha identidade, do meu eu.

       Na cidade grande eu continuo tendo um endereço, uma habitação num condomínio onde resido quando tenho algo lá a fazer. Mas não vejo a hora de deixar a poluição, o barulho, o trânsito maluco, o anonimato das ruas e o isolamento dentro daquele condomínio. Porque este tipo de vida não é humano, nele não cabe a humanidade. Para ter humanidade, para eu saber que sou uma  pessoa como as demais, eu preciso do outro, daqueles  que se aproximam para me mostrar, por atos e palavras "o que" e "como" eu sou.

      São as amizades, os trabalhos, a busca dos objetivos e sonhos  de um grupo, de uma família,  as lutas para a solução de problemas comuns, o apoio nos sofrimentos e as alegrias pelas vitórias de cada um que compõem a moradia de uma pessoa. Seja ela um barraco de favela, uma residência de vila, um sítio em zona rural, um apartamento de condomínio residencial, será sempre o lar (minha morada), o centro da minha moradia.

       A história do homem e da sua evolução mostra bem o processo de transformação do seu local de vida a partir dos seus primeiros habitats até chegar ao importante e complexo significado de moradia e sua relação ao atual conceito de ambiente de vida..

       A vida comunitária humana, a exemplo dos animais, começou nos habitats, locais onde grupamentos de indivíduos erguiam suas habitações ou escolhiam suas cavernas para nelas permanecerem durante determinado tempo ou estação do ano,  após o que partiam para outras direções e locais. Nessa época não se pode dizer que havia uma vida comunitária como a que foi sendo construída no decorrer do tempo. Os meros contatos entre os habitantes reunidos num grupo,  tinham por objetivo facilitar a caça, as permutas e a comunicação visando a sobrevivência do grupo.

         Aos poucos, de início muito lentamente e depois de forma cada vez mais acelerada - porque o homem nasce equipado para isso -, a vida intelectual e emocional começou a desenvolver-se tanto mais rica e rapidamente quanto maior e mais próximo um grupo estivesse a outros. Os contatos entre si levaram os habitantes a aprender  a se comunicar cada vez melhor e a buscar na natureza à sua volta os recursos de que precisavam para deixarem de ser tribos nômades. A estabilidade e a segurança cada vez maiores, permitiram cultivar a convivência. Suas habitações passaram a ser residências sem tempo de validade enquanto muitas das pessoas de sua convivência mais íntima começaram a fazer parte de sua família. As famílias começaram a configurar grupos ligados não só pela  consanguinidade como por fatores sentimentais e de interesses materiais. O homem começou então, ao invés de adaptar suas necessidades ao que era produzido naturalmente pela Natureza,  a ampliar e manipular os recursos da Natureza para satisfazer suas necessidades na mesma  medida de seus conhecimentos e interesses. Era o início da exploração comercial e industrial da Natureza pelo homem.

       O progresso que levou à diversificação das atividades econômicas  e o advento da tecnologia principalmente, introduziram tantos novos elementos na vida do homem em sociedade que as formas de trabalho passaram a exigir mais tempo em locais diferenciados. Ele começou a viver, alem do local onde residia, também naquele onde trabalhava. Nestes, começou a conviver com as pessoas e ambientes que definiam e caracterizavam a rotina das atividades que realizava.

     Hoje o conceito de Moradia passou a  abranger o conjunto dos  lugares e pessoas e/ou grupos onde e com os quais o homem vive e convive. O seu espaço de vida na sociedade e no mundo. Atualmente é muito frequente que homens e mulheres passem  mais tempo nos locais de trabalho, em viagens, em serviços fora de casa ou participando de atividades em grupos,  do que em seus lares.

      Atrelado à contingência do desenvolvimento econômico principalmente, o trabalho das mães fora de casa são as causas de que,  a partir de bem novas, muitas crianças estejam crescendo com um sentido mais amplo de moradia e de família por passarem grande parte de sua vida em berçários, creches ou em atividades de tempo integral nas escolas, em convivência com cuidadores e/ou professores. São os "tios" e "tias" que passaram a ser vistos como parte singular das famílias.

     As atividades que exigem um tempo da vida  fora do lar fazem parte dos fatores que emprestam um tipo de identidade, determinam características que marcam e definem locais e pessoas, um grupo ou uma população. Por exemplo, o indivíduo pode adquirir um "status" social ou certas características de identidade por ter sido aluno de uma escola, ter sido ou ser membro de um clube, pertencer a uma linhagem, fazer parte de uma equipe, de um grupo religioso, ser morador em um condomínio, um bairro, uma cidade, um estado ou um país, ter uma cidadania etc.

     É esse tipo de identidade, de aproximação implícita, que dá um novo sentido ao conceito de família ligado ao de moradia. Ele transparece, por exemplo, na conotação fraterna dos cultos e "Irmandades" religiosas assim como nos títulos de "Pai", "Mestre", "Guia" e em afirmações tais como: "você é meu irmão (ou minha irmã) por opção", "você mora em meu coração", "você está sempre comigo" ou ainda, " você sempre estará em meus pensamentos".

       Esses conceitos evidenciam o fato de que os homens  dependem uns dos outros para conhecerem a si próprios, para construirem a sua identidade. Se você morar em um bairro, seus vizinhos e amigos do bairro, para o bem ou o mal, acrescentarão algo na maneira como vê a si próprio. Enquanto você e eles lá morarem e mesmo depois, terão introduzido ou mudado algo,  uns da vida dos outros.

    Enfim, se estiver morando em um condomínio, com diferentes  graus de aproximação os condôminos se identificarão como um grupo onde, de um lado, são únicos proprietários de  suas unidades condominiais privativas e autônomas, isto é, únicos donos de seus apartamentos e, de outro, são co-proprietários ou seja, igualmente donos, das áreas comuns do condomínio. Um terceiro lado pode mostrar a rede  das interações que se estabelecem entre os condôminos deste com os de outros condomínios vizinhos, ainda  mais complexa quando houver passagens de serventia entre dois ou mais condomínios (passagem comum para chegar a uma rua). A interação se estende a funcionários e inquilinos, dos quais se tornaram amigos ou apenas conhecidos. Todos estarão participando, modificando, enfim colaborando na construção de uma "linguagem" comum, da imagem que cada um faz de si próprio e dos demais, como moradores daquele ou daqueles condomínios.

      Morar junto, portanto, não é  apenas co-habitar mas con-viver. Um condômino pode se negar mental e emocionalmente ao convívio com os outros, pode se confinar em seu apartamento e se sentir só e abandonado,  embora fisicamente próximo dos demais. Ele se sentirá isolado porque a vida dos demais condôminos nunca fizeram parte da sua nem por interesse, nem por trabalho ou atividade.

      Infelizmente muitos são os Condomínios onde ocorrem esses casos e muitas vezes o grupo gestor poderia ajudar. Alguns exemplos de situações bastante frequentes em que os gestores não percebem o aspecto humano de seu trabalho: o do síndico que não mora no condomínio nem toma conhecimento do que lá acontece e deixa nas mãos da administradora o que lhe competiria fazer; o do subsíndico oculto cujo nome praticamente nenhum condômino conhece; o do conselheiro figurativo que assina os demonstrativos contábeis mensais  mas não os lê e que nem comparece às Assembleias e, finalmente, o daquele condômino que tem lá um apartamento para passar férias ou fins de semana mas não faz questão de conhecer ou ser conhecido das pessoas do condomínio.

      É da qualidade de vida, da harmonia da convivência e da auto-identificação das pessoas com o seu condomínio sob a direção de um grupo gestor esclarecido, que irá sendo construído o conceito de moradia e, com ele, o da segurança e bem-estar de cada um.

    Quando o homem entender que a vida atual nada mais tem a ver com o passado; que as famílias se distanciam cada vez mais, tanto por seu trabalho e suas atividades e seus amigos quanto pelo local onde estão morando, ele perceberá que esse vazio deve e pode  ser preenchido por outras atividades com seus próprios amigos. Enfim, que no mundo moderno é importante que o homem encontre seu ponto de equilíbrio social e individual e uma das formas para isso é entender o novo conceito de moradia.

    Sem dúvida, o que foi dito aqui não é segredo para ninguém. Não o foi para mim. E o fato de aparentemente parecer difícil de entender não significa que seja impossível praticar. Às vezes o que está muito perto é o mais difícil de ser encontrado. Se pensarmos bem, ser feliz depende inteiramente de nós e não do que está fora de nós. Tudo no mundo tem duas faces opostas e cabe a nós  escolher a qual desejamos. Há os que procuram o lado negativo da vida, o feio, o triste e os que preferem o outro lado, pois sempre há o positivo, o belo e o alegre nas pessoas e coisas.

    Acho que eu comecei a encontrar minha moradia quando me interessei pelo mundo, pelas pessoas e comecei a ver que meu lar e meu ambiente de vida não dependiam do que estava fora de mim mas do que estava dentro, de como eu via e interagia com o que estava à minha volta.

    Assim, percebi que minha moradia é a que eu construo quando equilibro o que tenho dentro e fora de mim e, com esse sentido meu apartamento poderá ser sempre minha moradia onde quer que esteja, e com o que estiver em volta. Eu, como todo ser humano, tenho o poder de mudar, de transformar meu mundo e as pessoas com as quais vou interagir. O significado que as pessoas e as coisas têm para mim é aquele que atribuo a elas. Quando precisar ajuda, posso pedir e também posso ajudar.

    A interação leva ao crescimento e ao bem de todos. Neste caso há sempre esperança para o  meu, o nosso condomínio, a minha, a nossa moradia neste imenso Condomínio chamado Terra que o homem habita dentro do Universo.


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