A HISTÓRIA DO MEU “PUXADINHO”
Lília Sampaio de Souza Pinto
29/05/2018

Depois de uma semana internada em um hospital para curar uma pneumonia, voltei para casa paparentemente boa, com tudo bem zeradinho. Por causa dessa doença perdi uma bela viagem à Portugal, tudo arrumado, pago e planejado, com minha irmã , meu filho e minha nora.
Paciência, ainda bem que o hospital onde fiquei era maravilhoso. Meu conhecido há muitos anos, lá a gente é tratada com muita eficiência, atenção e carinho; um verdadeiro “Spa”!
Entretanto, eu queria mesmo era voltar às minhas atividades interrompidas, à minha rotina em minha casa... E assim foi por duas semanas quando...lá estava eu de volta ao indesejado Spa, muito assustada com tanta pneumonia!
Agora, deixe me apresentar: sou uma idosa com 94 anos e meio, o que significam 95 pois os 94 já foram cumpridos ou passados e, quem sabe fazer uma continha de “menos”, facilmente vê que, saindo de 1923 ( meu nascimento) para chegar aos 2018(hoje), sobrarão 95 (minha idade). É a verdade, embora teimem em colocar minha idade nos 94 anos. E dizem que sou teimosa...!
Só me referi a isso para justificar minha familiaridade com o hospital e doenças. Desgaste natural, não falta de saúde nem de qualidade de vida pois destas não posso me queixar.
Bem, voltei novamente ao hospital e fiquei horas fazendo exames e aguardando vaga para internação. Tudo lotado! A velha explicação de sempre para justificar a falta de respeito à Natureza: mudança de estação, gripes e bactérias no ar! Se sabe disso, então por que não uma echarpe no pescoço para proteger a nuca, entrada do vento e do frio que vêm de repente nos períodos de mudança?
Finalmente...Ufa! Vieram avisar que desocupara um quarto e só faltava higienizá-lo para estar disponível.
Lá fui eu para o meu quarto recém-higienizado e equipado com tudo que precisaria para emergências, uma semi-UTI. Mas era bem diferente do anterior onde eu havia estado pela primeira vez, ala nova do hospital, tudo maravilhoso, moderno, com tecnologia avançada desde as persianas até a luminária.
Este de agora é muuuito menor, antigo, aquele jeitinho das minhas lembranças da infância: mesinha num canto, um sofá debaixo da janela, uma peça entre criado-mudo e estante com uma prateleira, mas sem porta, um nicho embutido na parede, com porta e, debaixo dele, outro nicho menor com prateleirinha e sem porta. Tudo muito bem arrumado, super limpo e a janela grande deixando entrar o sol da manhã. Face nordeste, perfeito! Só que pequeno...muito pequeno! Se você puxasse o suporte para o soro mas esquecesse de ir para o outro lado, não poderia sair de trás dele, a não ser por via aérea ou subindo na cama do paciente.
Para vocês terem uma idéia, o nicho do qual falei era o guarda-roupas. Parecia mais uma passagem secreta como aquelas que os antigos quartos dos castelos tinham. Lindo! Adorei, porque gosto de filmes e histórias de mistérios. No nicho abaixo daquele, aberto, um mini-frigobar que daria para emergências.
A porta de entrada (dava para passar uma cadeira de rodas, sim, pois antigamente essas cadeiras já existiam) abria no corredor de entrada e, na parede ao lado dela, outra porta, a do banheiro. Assim, ambas as portas quase se comunicavam, a do corredor de entrada abrindo para o corredor do quarto e a do banheiro para o interior do banheiro; então elas não se cruzavam mas, abrindo ambas ao mesmo tempo, forneciam um visual completo. Oba! Primeiro banheiro com visão panorâmica para o trânsito no corredor do hospital e vice-versa!
Certa madrugada, não querendo acordar minha filha acompanhante, fui ao banheiro. Ao voltar, a má sorte fez com que a enfermeira estivesse entrando no quarto para fazer a ronda das 2 horas. Nossos olhares se cruzaram, a mão dela com a bandeja dos medicamentos tremeu e quase foi tudo para o chão. Detalhe, se ela tivesse um AVC eu seria uma criminosa! Com dois bobes no alto da cabeça e o nariz até o lábio com bigode branco de Hipoglós, por causa de ressecamento produzido pelo contato do sal do soro da inalação com a pele sensível das narinas, eu deveria parecer um fantasma branco avançando para ela.
E o interior desse banheirinho!!! Personalizado para o benefício de cada um que o utilizasse.
A bacia bem perto da porta e defronte ao lavatório. Debaixo deste, o recipiente para o lixo. Só que a uma distância de mais de um braço - dos normais naturalmente! Agora, imagine a cena de quem estivesse sentado no vaso: primeiro, se inclina para a esquerda, tentando olhar para a mão direita que vai subindo, subindo, até alcançar a papeleira presa ao alto da parede quase às suas costas. Hurrah!!! Pega um chumaço de papéis , faz o que deve com ele e ... como colocar o papel no lixo fora de alcance? Mirou, mirou e atirou o papel com um lançamento preciso ... fora do contêiner...! Mas que foi um belo lançamento de disco, o Discóbolo do grego Míron é a prova!
Bem, gente! Esse quarto que eu descrevi, é o meu amigo e herói, o “Puxadinho”, nome que colocamos por ser dos primeiros (mais precisamente, o segundo) conjuntos a serem construídos para ser este hospital.
Como viram, ele é especial e cada paciente que o vê, o utiliza e o percebe à sua maneira. Na verdade o mundo à nossa volta é como nós o vemos mas, em geral, por força de fatores e valores sociais, somos levados a julgá-lo segundo padrões artificiais. Exemplo disso é o valor atribuído a um hospital segundo seu grau de luxo, mais aparente do que seus valores mais profundos de humanidade. A razão de existir de um hospital surgiu da primeira necessidade do homem de defender sua qualidade de vida. Essa é a premissa básica da medicina como ciência e fonte de terapia. Não é o paciente e sua cura a origem e o fim dos objetivos de uma instituição médica, sendo a voluptuosidade apenas o seu valor social?
Não digo isso para defender o Puxadinho, embora sirva! Ele é advogado em causa própria; mais do que isso, seu valor jamais poderá ser posto em dúvida. Começou em um hospital construído para ser um Centro de Estudos, Pesquisas, Prevenção e Cura dos males que afetam o homem em todas as idades. E vem cumprindo essa missão impecavelmente, atualizando seus padrões segundo a evolução não só no campo da Ciência Medica como das Ciências Humanas.
Não estou falando para enaltecer um hospital frente a outros, quero apenas mostrar, de um lado, fatos que ocorrem frequentemente e determinam uma classificação e um status numa sociedade. E, de outro lado, o que pode ser visto quando esses fatos são analisados à luz de uma premissa mais inclusiva e humana.
Agora vou dizer como vejo meu Puxadinho considerando quem o ocupa segundo três focos:
A) O Paciente, visto como a origem e o objetivo da existência de um hospital. Neste caso, a função do hospital é:
0. dar ao paciente os recursos para identificar seus males através de um tratamento holístico dos sintomas físicos e mentais desses males. Então, saber ouvir o paciente, suas dores físicas e emocionais, é predispô-lo a querer se curar. Isso exige da Medicina um trabalho em equipe e a parceria de vários profissionais da saude;
0. oferecer ao paciente alimento para o corpo e a alma. Refeições saborosas e bonitas aos olhos despertam a vontade de comer, e comer o que faz bem à saúde, é caminhar para a vida. Quando oferecida com alegria, atenção e carinho, a motivação para viver é o começo da cura.
B) O Hospital deve ter uma estrutura adequada à prevenção das necessidades dos pacientes a fim de atendê-las uma a uma nas áreas:
1. Externa: ruídos, iluminação, localização de serviços (estacionamento, restaurantes, transportes etc.).
2. Interna: organização dos ambientes internos desde os quartos até as áreas de serviços, atendimentos de emergências e equipamentos.
C) Os Recursos Humanos se compõem de profissionais e especialistas na área da saúde , em constante evolução que, com foco no paciente e com a cooperação mútua de seus parceiros, aplicam seus conhecimentos e recebem feedbacks num processo transdisciplinar e intergeracional de aprendizagem contínua.
Tudo isso encontro no Puxadinho quando olho para o seu:
1. Tamanho: pequeno, sim, mas cheio de calor humano e proximidade. Ninguém longe demais para ser ouvido, ainda que o velhinho fale com voz rouca, nem para ouvir, embora o paciente seja bem surdinho. A troca de energia é perfeita e isso faz bem tanto ao paciente quanto ao profissional.
2. Espaços: circulação super restrita mas...os profissionais altamente treinados parecem abelhinhas, cada uma fazendo sua parte com destreza e precisão.
3. Mobiliário: roupeiro, armarinho etc. suficientes para quem vai usar roupa do hospital para onde o paciente não vem com malas e bagagens de programas sociais. São os necessários, embora hoje ainda nem tanto suficientes.
3. Atividade: mesmo sendo pequeno o espaço para a mobilidade, - e talvez por isso mesmo - no sentido sócio-econômico o Puxadinho cumpriu sua missão. Veja o capítulo do espaço do banheiro versus tamanho do paciente!
A desarmonia entre as posições e distâncias da bacia, papeleira e recipiente do lixo, proporciona um excelente exercício físico para responder a um desafio de adaptação e isto, gente, o desafio, é a mola propulsora que desencadeia atividade para a busca do equilíbrio e harmonia de movimento e mudança no espaço. Quem diz isso não sou eu mas a Física Quântica e o Taoismo o comprova.
Acredito que posso convencer a quem estiver lendo este relato sincero, que construções antigas e vetustas podem cumprir a missão para as quais foram construídas com Sabedoria ( conhecimento que somente os antigos têm ) porque seus valores se sustentam num sistema dinâmico de vivência e não estático de modismo, sendo, assim, capaz de se adequar ao futuro. Sendo renováveis, nunca perdem seu foco e evoluem em seus paradigmas.
São renováveis porque se despem do inútil, ultrapassado, que impedem boas mudanças e renascem sobre o que foi e será cada vez melhor.
Adivinharam, não? O Puxadinho um dia irá para a reforma! Fará parte de um projeto de mudança para uma futura ala modernizada do hospital. E deixará de ser o “Puxadinho” para se transformar num belo apartamento cujo objetivo e função comandará todos os aspectos da sua nova forma.
Hoje desocupei o Puxadinho. Fui liberada da Unidade de Terapia Semi-Intensiva ( olha a importância do Puxadinho ) e levada para um quarto comum numa ala nova do hospital, à qual apelidamos “ Dubai” pelo conforto ( moderno, suficiente e necessário, sem ser voluptuoso ) com a mesma excelência de serviço e pessoal da ala antiga.
Esse hospital do qual falo neste texto com a verdade dada pela convivência e experiência de muitos anos ( não conte a ninguém mas acho que nasci antes dele ) é o Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, Brasil, hospital de referência mundial.