terça-feira, 15 de janeiro de 2013

As Estórias e nossas Histórias de Vida

Inicialmente quero deixar claro como vou entender e utilizar esses dois termos neste texto. A diferença de significado entre Estória e História, há pouco tempo pensada em ser introduzida em nossa língua e rapidamente rejeitada, terá aqui uma função necessária. Antes, porém, desejo respaldar minha posição na opinião de Sérgio Rodrigues quando consultado pela revisora Licia Matos em 2011 tendo em vista as reações de intelectuais ao uso ou não do termo estória com sentido diferente de história. Disse ele que o significado das duas palavras é o mesmo; que " estória" foi registrada no século 13 e " história" no século 14 , ambas com o significado que este segundo termo guarda até hoje e que sua posição pessoal é a de que não há razão para a diferença de significado dessas duas palavras. Conclui que " cada um deve decidir com a própria consciência e o próprio gosto seu caminho no mundo da língua". Em 1962, João Guimarães Rosa usou o termo " estória" no título e no primeiro conto de seu livro "Primeiras Estórias".
Após consultar várias fontes sobre o assunto, tomei a liberdade de utilizar a palavra História para me referir a fatos da realidade que aconteceram, dos quais participamos, aos quais assistimos ou que conhecemos através de documentos. Esse significado também alcança o que está acontecendo pois a história é escrita momento a momento. E não só abrange o que acontece no mundo, em países ou regiões mas na vida de todo ser humano, dos animais e na natureza ( por exemplo as grandes catástrofes ou um simples gesto na declaração da independência de um país podem constituir importantes fatos históricos). Há acontecimentos históricos que afetam a vida de todas ou grande número de pessoas no mundo e há fatos e acontecimentos que mudam a vida de um indivíduo e daqueles que com ele entraram em contato- são as Histórias de Vida.
De outro lado, será Estória a referência a emoções, contos, narrativas ou acontecimentos fictícios, assim como a criação de sonhos, fantasias, desejos ou planos, no campo da imaginação.

Se pensarmos bem, todos nós, assim como todos os seres vivos e a própria natureza, enfim, tudo que nasce, cresce e morre, somos histórias de vida. Se pensarmos mais a fundo, qualquer estória, fruto da ficção ou imaginação, resulta de arranjos fictícios de elementos da natureza ou de fatos e acontecimentos que existem ou existiram em momentos da história. Lógico, ninguém pode inventar ou criar algo do nada; o arranjo criado é que é novo. Isso explica porque qualquer obra, imagem, situação ou matéria descoberta ou criada no plano da imaginação, quando considerada em seus componentes, revela elementos conhecidos. Lembramos que mesmo os casos mais extraordinários no campo da estória, quando se pretende fugir aos domínios do conhecido, tal como a imaginação de monstros, de figuras de ficção, de situações inusitadas, etc., não podem ir além de dados da realidade. Exemplos disso são as antigas lendas e as figuras mitológicas formadas com partes de animais e de homem ( o Pã ou Fauno com orelhas, chifres e pernas de bode, o Minotauro com cabeça e cauda de touro e a Esfinge de gizé com cabeça de homem e corpo de leão) . Também a deformação ou a estilização de traços humanos, animais ou da natureza para a composição de um ser fictício ou entidade idealizada, terá por base elementos já existentes. São realizações da estória, muitas delas cujos significados ou consequências passaram ou poderão passar a fazer parte da história do homem e do mundo. Por exemplo as consequências sociais das previsões dos oráculos e pitonisas nas guerras e conquistas, as provas por imposição divina ou de divindades para determinar a culpa ou a inocência, etc. Enfim, tudo que acontece no mundo da ficção é resultado de modificação ou transformação mentalizada do já existente. Como dizia Lavoisier: " na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma" . Portanto, é impossível ao homem sonhar ou criar alguma coisa do nada, assim como retornar ao nada ( à não existência ) qualquer coisa ou sonho que tenha tido. A partir daí podemos concluir que toda ação do homem decorre ou é consequência dos resultados de ações dele mesmo ou de outrem e, por sua vez, irá produzir resultados que trarão consequências para ele mesmo e para outros.
As conotações emotivas, os sonhos e fantasias que permeiam as ações do homem em suas histórias de vida, e que frequentemente as direcionam e valorizam, formam com elas os conjuntos de estórias e histórias que permitem ao homem viver plenamente, isto é, ser ao mesmo tempo realista e sonhador. Concluímos, então, que na vida humana -e somente nela - a Estória é também parte da História na medida que, em cada momento de sua história de vida, nas ações do ser humano estão incluídas as condições da realidade com suas conotações emocionais. Assim, em resultado do tipo de encontro e da natureza dos elementos com suas conotações emotivas que incidem e participam do desenvolvimento do ser humano, as mudanças decorrentes podem produzir consequências boas ou más e as mudanças subsequentes tenderão a provocar também consequências de algum modo boas ou más e assim por diante; e nesta medida vão sendo escritas as histórias de vida dos participantes nos diferentes encontros.

Com essa reflexão procuramos justificar a idéia de que a partir do nascimento - talvez da própria concepção-, quando o ser humano começa a realizar seus primeiros movimentos em direção ao seu desenvolvimento, começa também a escrever sua história de vida. E o interessante é que, embora toda história de vida tenha por base elementos naturais (da natureza) que ocorrem ciclicamente na vida de todos os seres da mesma espécie ao longo do seu desenvolvimento, os " arranjos" desses elementos, acrescidos das conotações emotivas a eles ligados, diferem a ponto de não existir um indivíduo igual a outro (nem os próprios gêmeos univitelineos ). Cada um é uma composição diferente a partir dos mesmos elementos básicos de tal modo que cada um é um ser " sui generis", único , distinto dos seus semelhantes, isto é, não se confunde com nenhum outro.
Neste caso, a ficção e a fantasia, as emoções e os desejos, são composições ou "arranjos" imaginários cujos elementos fizeram parte de histórias de vida. Enfim, a Estória existe porque existe a História. Uma não pode existir sem a outra do mesmo modo que um homem nunca poderá agir como uma máquina ( um ser inanimado) e vice-versa.
Portanto podemos concordar que, inicialmente, todo ser humano é formado a partir de elementos doados por seus pais através de seus genes em algum momento de suas histórias de vida. A partir daí a história de vida de todo ser humano, isto é, o seu desenvolvimento, será seguidamente resultante da influência de dois fatores: de um lado, das histórias de vida das pessoas, dos seres e de elementos da própria natureza que irão participar de seu ambiente de vida. Ou seja, durante todo o seu desenvolvimento a história de vida do ser humano será influenciada pelas histórias de vida dos seres com os quais ele irá se relacionar. De outro lado, a sua história de vida receberá a influência das conotações emocionais que lhe atribuem valor ( basicamente do bem e do mal, do certo e do errado, do belo e do feio, etc) oriundas das estórias que cada história de vida humana traz consigo, inclusive de suas próprias experiências passadas.
Pode-se dizer que sempre que um indivíduo entra em contato mental ou físico com outro, algo é modificado na composição dos elementos que formam a história de vida de ambos. Ambos acrescentam algo à sua história, isto é, ambos crescem em experiência, portanto, ambos ensinam e ambos aprendem.

A partir do que foi dito, acho que já é possível entender o papel de certos fatores da estória em mudanças que podem ocorrer na história de vida de um indivíduo assim como a influência de fatores decorrentes de histórias de vida de um ou mais indivíduos nas de outros. Lembremos que Estória e História coexistem no desenvolvimento da vida de cada indivíduo sendo a primeira referida ao campo do sonho, da fantasia, da ficção, dos desejos, das intenções enquanto a segunda se refere aos fatos e acontecimentos que ocorreram ou estão ocorrendo no plano da realidade. O plano da estória não está atrelado ao tempo e ao espaço. Ela obedece apenas aos elementos do conhecido, componentes da criatividade, dos sonhos, dos desejos, da fantasia. O plano da história, ao contrário, é escrito no espaço e no tempo uma vez que o que permanece dos fatos e acontecimentos são os registros. Um fato nunca pode se repetir como o mesmo.
O fator de risco surge quando o indivíduo permite, em algum momento, à estória substituir composições da sua história, ou seja, quando a fantasia e a realidade se confundem.
Não é incomum o ser humano confundir ficção com realidade. Isto ocorre, por exemplo, em situações emocionais extremas ( campo da estória, quando o comportamento é determinado pela fantasia) como nos casos de euforia, de depressão, de raiva, de medo, etc. Para citar alguns casos mais comuns lembramos o da garota que pode " endeusar" seu namorado a ponto de ficar impedida de vê-lo como é na realidade. Após algum tempo o véu do sonho e da fantasia ( que na verdade estava em seus olhos) cai e ela não se conforma por não reconhece-lo mais e aceita-lo com suas características reais. Outro caso é o da pessoa com depressão que vê o mundo escuro, sente sobre seus ombros todas as coisas más que acontecem, acredita que as pessoas a perseguem e termina por não reconhecer mais a realidade da vida. Ainda outro tipo de comportamento ditado por razões fora do campo da realidade é o da violência cega desencadeada a partir de situações corriqueiras tais como a reclamação de um troco errado em um restaurante. Ainda podemos lembrar os casos de possessão, quando um indivíduo age como se fosse outra pessoa ou entidade. Lógico, a estória também produz fatores positivos em toda história de vida. Existe um lugar muito importante para as obras de ficção, a fantasia, os sonhos, os desejos e os planos . São eles os responsáveis pelas pesquisas e conquistas que fazem parte da história. Eles trazem fé, energia, alegria, esperança e força para enfrentar os obstáculos e construir no mundo um lugar melhor e isso também influencia outros seres nos encontros. Mas sempre precisaremos saber distinguir o "sonho sonhado" do "sonho possível" que pode ser realizado.
Outro fator a se ter sempre presente na consciência é o das relações interpessoais, ou seja, o da influência mútua que ocorre no comportamento das pessoas sempre que entram em contato. Isto é tão importante que um momento na história de vida de uma pessoa pode mudar drasticamente a de outra a partir de um encontro.
Lembramos aqui, a título de ilustração, dois casos, um deles em que, em certo momento da história de vida de uma pessoa, fatores da estória - a imaginação e a fantasia- foram responsáveis por mudanças na história de vida de outra.
É o caso de uma amiga, até a adolescência tímida e introvertida, que modificou sua personalidade a ponto de ser hoje uma mulher vencedora, realizada e segura. Essa mudança aconteceu quando, em uma aula, ela participou de uma atividade de dramatização. Sendo obrigada a interpretar um personagem na situação dramatizada, encontrou em si qualidades antes apenas sonhadas.
Outro caso é o de uma outra amiga. Sua história de vida teve muita influência no desenvolvimento da minha. Encontrei nela um grande exemplo de expressão de qualidades admiráveis. O que a distinguia das demais pessoas era sua calma e meiguice, sua prontidão para ajudar sempre com interesse e participação e nunca com displicência. Adorava a natureza, principalmente as plantas e os animais e nunca deixava sofrer ou destruía - como eu observava - nem uma teia de aranha! Seu grande amigo era o sol e sob ele ficava, sempre que podia, com um largo chapéu cuidando das flores e da horta. Sempre muito agitada e apressada nas coisas que fazia, eu imaginava qual seria seu comportamento em cada situação e tentava modificar o meu. Acho que em muitos aspectos eu mudei em função de seu exemplo e dos sonhos que ela trazia para mim.

Enfim, espero ter levado ao leitor deste texto duas mensagens que julgo úteis e importantes para a vida. Que a história de vida de cada ser humano possa incluir sua estória na forma de fantasia, sonhos e desejos e que estes possam contribuir para suas conquistas e sucessos sem nunca esquecer a alegria de esperar por novas conquistas e novos sonhos. Que a história de vida de cada ser humano possa ser escrita com a participação de outras histórias de modo a aumentar sempre mais a força e a energia do todo e a contribuição de cada um.

Um comentário:

  1. Mais um lindo texto vó, adoro a forma como escreve e como coloca seus pensamentos e sentimentos. Beijooooooo cheio de saudade!!!
    Jana

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